mamãe ao deitar os talheres no prato frio sempre com os cabos para o lado direito passa os olhos por mim porque também já acabei de jantar mas não alinhei garfo e faca então o faço. enquanto colore a taça de vinho branco com o vermelho tinto da boca serve mais comida à caroline; minha irmã aprendeu cedo a ceder come tudo qualquer coisa que mamãe lhe oferece sussurrando para ficar linda como eu sou, filha os dedos pesados de ouro empurrando a comida à colher e à garganta da gente; nas costas de mamãe uma palmeira abre tímida no vaso encostado na parede se espreme por trás dos cabelos dela que não fugiriam dos grampos dourados - jamais arriscariam; o pão caseiro cheira no forno fermentando comigo ambos feitos por esta mulher que cozinha trabalha medita dança namora viaja e tem a mim. coitada dela, me tem com meus peitos murchos e vermelhos no boletim de matemática alimentada pelos mesmos grãos de feijão gentilmente empurrados também em carol.
papai ao largar os talheres no prato ainda quente (nunca de um modo padronizado) demora os olhos em mim porque estou jantando mas já alinhei a colher - não a usarei mais; dou-lhe uma leve entortada. enquanto colore a boca pálida com o vermelho tinto do vinho papai oferece mais comida à caroline minha irmã não sabe ceder come pouca coisa que ele oferece enquanto grita a ela se não comer, vai ficar igual a mim os dedos peludos apontando os grãos no prato e direcionando à boca dela. nas costas dele um galho morto se sustenta no vaso encostado na parede não vê água há meses era a coroa naquela careca fosca; a massa queimando no forno quente como nossa família vapor pelas janelas nós feitas por este homem que não sabe sequer fazer um pão uma venda um passo de dança um risco fez a mim com meus seios fartos e notas exemplares em matemática eu, alimentada pelo mesmo feijão salgado que esfria no prato de carol.
Os poemas acima são o resultado de uma sequência de exercícios de escrita inventados pela Tayná (você a encontra em @sutilezasatomicas). Se quiser tentar também, fique de olho nas aulas que vira e mexe ela oferta — são sempre fantásticas. Fora esta curiosidade, não tenho mais o que dizer sobre o perigo de inverter tudo em um texto e ver no que dá.
Sem notícias do lado de cá. De dia, as tarefas; de noite, as memórias da infância (estou sonhando com detalhes arquitetônicos das casas por onde morei na infância, o que é inédito). Entrega texto, revisa parágrafo, escreve resumo de congresso, sente que nada faz sentido, tropeça no próprio caminhar, faz carinho no vira-lata caramelo da rua de baixo, consegue se alimentar sem maiores problemas, quase queima o chuveiro nesse frio danado, lê uma crônica, lê uma crítica ao próprio escrito, lê relato palestino, sente a anestesia, desanda, as noites enormes não dão conta do descanso, a vida ganha um pouco de cor de novo, come um docinho depois do almoço, o salário cai e as contas o devoram, faz lista de mercado, dança. Sabe como é.
Noite dessas fui para um bar com colegas de trabalho (e pesquisa lá é trabalho?), estava frio e eu queria ter ido logo para casa. Comentei que estou morando com meu namorado, perguntaram como é (acontece de ser uma galera mais nova e, em geral, solteira). Tem dois pneus de moto na mesa de jantar, respondi enquanto ria. Precisei complementar o relato dizendo que, na verdade, é bem divertido; e são pneus novos, é claro. Acontece que eu já morava sozinha onde agora mora outra pessoa, e ainda estou aprendendo a dizer nossa casa, nosso chaveiro, nossa vassoura velha, nosso-pote-de-tampa-verde-que-se-emprestar-e-não-voltar-vai-ter-que-fabricar-um-novo-igualzinho. Nesta semana descobri também que tem diferença entre receber a internet pelo wi-fi e pelo cabo lan (acho que falei certo), e que, para receber pelo cabo lan, tem que passar o tal do cabo lan por dentro das paredes de toda a casa até chegar no quarto ao lado. Fizemos um mapa da fiação do apartamento, coisa que, sozinha, jamais me preocuparia em traçar. Também desistimos da guarda compartilhada da tesoura da cozinha. Agora cada um tem a sua e larga onde convém. Todas as minúsculas observações podem ser partilhadas, das flores novas no jardim da varanda às rachaduras na tintura do corredor, e duas pessoas sujam mais a casa do que só uma, mas empoeiram muito menos. Mesa, sofá e cama passaram a ter lugares marcados; estamos descobrindo essas e outras cartografias de afeto.
Enfim: nada de novo, nada de útil pra você que leu até aqui. Desculpa, de novo.
E você? Como foi a sua semana?
Até o próximo domingo (ou sábado),
Fernanda ♥︎